A falta que Milton Santos faz

Por Maria Encarnação Beltrão Sposito

IlustraçãoVivemos, sem dúvida, um período de grandes e rápidas mudanças, que ele chamou de "aceleração contemporânea". A volatilidade dos acontecimentos nos assusta e a fluidez das comunicações, ao mesmo tempo que nos possibilita saber mais coisas, conhecer mais lugares e pessoas, ter acesso a novas idéias e informações, nos conduz ao envelhecimento dos fatos.

É num espaço-tempo como esse que, vez ou outra, mesmo diante do turbilhão que nos envolve, percebemos que nada podemos fazer diante do que não queríamos que assim fosse. Permanecemos paralisados, a despeito da rapidez, da fluidez, da volatilidade dos acontecimentos que continuam a se suceder.

Assim ficamos, assim estamos diante da morte de Milton Santos. Por que, num país sem grandes tradições culturais, numa sociedade nunca acostumada a cultivar seus grandes homens e mulheres, num período de descrença em nossa elite intelectual, paramos diante dessa morte? Por que a imprensa a noticiou com tanto cuidado? Por que nos sentimos, assim, um pouco e muito órfãos?

São perguntas difíceis de serem respondidas, porque nelas se escondem razões e emoções, fatos e mitos, o que poderá ter sido e o que, de fato, foi. Qualquer coisa a ser dita será resultante desse amálgama, desse mosaico de sentimentos, sensações, explicações – mas, ainda assim, é preciso ensaiar dizê-las...

Perdemos um intelectual cuja importância pode ser medida pelo conjunto da sua obra, pelas teorias que produziu, pela filosofia das idéias que ensejou. O intelectual derivava de uma personalidade ímpar, cuja disciplina para a reflexão, capacidade de debater idéias e submeter ao embate suas convicções tanto encantava como assustava.

A personalidade ímpar ajudava a entender o ser político, desconfiado dos partidos, nada afeito às doutrinas, pouco chegado aos grupos. O professor, o conferencista, o jornalista expressavam, de forma clara, esse intelectual, essa personalidade, esse ser político. De seus alunos, de suas platéias, de seus leitores exigia atenção, na mesma medida em que atenção lhes dava com as palestras regiamente preparadas, com os textos profunda e sinteticamente elaborados, com o discurso que dançava entre as metáforas.

Mas havia o homem, por mais que se nos apresentasse o mito. E era um homem absolutamente fácil de ser atingido, mas absolutamente difícil de ser conquistado. Parecia, sempre, a síntese contraditória, que se poderia pensar impossível, entre a "baianidade" e a "francesidade". Na infância e juventude, vividas na Bahia, podemos buscar as raízes de seu jeito franco, de suas risadas abertas e maliciosas. Em sua experiência de semi-exilado no Exterior, vivida sobretudo na França, encontramos as explicações para sua polidez, seu refinamento, seu tom às vezes educado, às vezes voraz, mas sempre crítico de fazer observações, de questionar, de discordar.

Perdemos esse intelectual, perdemos a possibilidade de continuar a examinar essa personalidade, perdemos a oportunidade de prosseguir observando esse ser político, de assistir ao conferencista, de ler o jornalista, de conviver com o homem. E não perdemos isso numa hora qualquer, mas num momento em que precisamos de âncoras, de referências, de paradigmas e, por isso, como sociedade, reforçamos o mito e corremos o perigo de perder a oportunidade intelectual de debater suas idéias. Estamos perplexos, porque era bom, diante do discurso único que nos assola, vê-lo afirmar que é possível: "Opor à crença de que se é pequeno, diante da enormidade do processo globalitário, a certeza de que podemos produzir as idéias que permitem mudar o mundo."

Estamos entristecidos, porque era um alento com ele supor que a razão técnica e a razão política que alimentam o pensamento único também contêm, se delas fizermos outro uso, a possibilidade de uma consciência universal e a semente de uma outra globalização. Para que a perda seja menos pesada e para que a perplexidade se desvaneça, temos que guardar, na memória, a personalidade e o homem. Mas é preciso aceitar a perda, para que possamos prestar atenção às idéias, não como discursos, mas como possibilidades para a ação política. É preciso prestar atenção às idéias, para que elas conduzam ao movimento dialético de sua própria superação, no plano intelectual.

Se, assim, formos capazes de pensar, teremos aprendido um pouco com Fernando Pessoa: "A morte é a curva na estrada. Morrer é só não ser visto".

Maria Encarnação Beltrão Sposito é geógrafa, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, câmpus de Presidente Prudente.

Nota: o geógrafo Milton Almeida dos Santos, doutor honoris causa pela UNESP em 1997, autor de mais de 40 livros, morreu no dia 24 de junho último, aos 75 anos.

Fonte: Jornal da UNESP - edição nº 161 de Outubro de 2001


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