Entrevista com Hédio Silva Jr.
Folha de São Paulo, seção Brasil - 09/07/2001-

Por Fernanda da Escóssia, da sucursal do Rio de Janeiro

Nélson Mandela, exemplo da consciência negraEspecialista na legislação de combate ao racismo, o advogado Hédio Silva Jr., 40, diz que as leis brasileiras contra a discriminação estão entre as melhores do mundo, mas, paradoxalmente, dão pouco resultado. Na avaliação dele, o operador do direito (do policial ao juiz) trata do crime de racismo com base em estereótipos, e não na lei. Para Silva Jr., o governo nada tem feito contra a situação de desigualdade vivida pela população negra.

"A única política de inclusão para o negro é a política penal", critica. Silva Jr. era um dos 14 representantes da sociedade civil no comitê misto criado pelo governo brasileiro para preparar a posição do país na Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância, que acontece em setembro na África do Sul.

Insatisfeito com a política pública governamental de combate ao racismo, ele rompeu ontem com o comitê, durante a Conferência Nacional Contra o Racismo e a Intolerância, realizada no Rio como preparação para o encontro da ONU. A seguir, trechos de sua entrevista à Folha:

Folha - Como o sr. avalia o resultado da conferência?
Hédio Silva Jr. - A rigor, o resultado não trouxe novidade a não ser o fato estranho de se tratar de uma conferência em que o único ator a se pronunciar foi a sociedade civil. O Estado entrou silente e saiu calado. Foi lançado um plano de combate ao racismo cuja maioria das propostas já constava de um plano lançado há cinco anos. É lamentável que o Estado não tivesse nada a dizer.

Folha - Como o sr. analisa a política do governo contra o racismo?
Silva Jr. - A única política diferencial que o governo federal tem para a população negra é a política de inclusão penal. O sistema penal e a Justiça criminal tratam a população negra de modo diferenciado, têm uma sinistra predileção por negros. Tínhamos expectativa de que o governo pudesse levar para a África do Sul pelo menos uma medida concreta, e não encontro nenhuma.

Folha - Por que deixou o comitê?
Silva Jr. - O governo vende uma imagem externa de que aqui existe perfeita integração com a sociedade civil, passando, no plano internacional, a imagem de que dialoga e reflete os anseios do movimento negro. É um diálogo sem consequências, um monólogo; porque nós falamos, a diplomacia escuta, mas isso não se reflete em compromisso. Temos a mesma indiferença do primeiro escalão do governo Fernando Henrique para adotar qualquer medida.

Folha - O que é ação afirmativa?
Silva Jr. - A ação afirmativa nasceu nos Estados Unidos em 1965, um ano depois da adoção da Lei dos Direitos Civis, quando o presidente Lyndon Johnson baixou um decreto exigindo que as empresas que contratassem com o Estado fizessem um esforço para empregar negros. Houve um entendimento de que as desigualdades entre os negros e os brancos nos EUA eram de tal monta que, se o Estado não investisse de modo diferenciado no segmento negro, nunca haveria igualdade de fato. Historicamente, assumiu várias configurações. Nos EUA, uma empresa não é obrigada a contratar negros, mas deve ter uma política de inclusão de negros, e hoje de asiáticos. Na Índia, há cotas, efetivamente. Na África do Sul, há a ação corretiva, em que o governo fiscaliza as empresas.

Folha - Mas há racismo nos EUA...
Silva Jr. - Quando se pensa em ação afirmativa, pensa-se em diminuir as taxas de desigualdade entre negros e brancos, em assegurar maior exercício de direitos. Não se está pensando em mudança de valores. É o limite que a lei pode desempenhar. A lei não tem como obrigar os brancos a amar os negros, mas tem como obrigar um indivíduo a não violar o direito de um negro. Obviamente há um papel que pode e deve ser exercido pela publicidade, pela educação, que é uma mudança de valores, para fazer com que a diversidade, hoje associada à inferioridade, seja valorizada.

Folha - A separação de cotas para negros não é discriminação?
Silva Jr. - Quando você analisa a distribuição de oportunidades no Brasil, vai constatar que existe uma política de cotas que estabelece que 100% dos garçons da orla do Rio de Janeiro sejam brancos, quase 100% da magistratura seja branca, 100% das comissárias de bordo sejam brancas. Homens brancos no Brasil são beneficiários de um privilégio material e simbólico. As políticas de ação afirmativa visam acabar com os privilégios. Não visam discriminar os brancos, mas eliminar os privilégios que os brancos têm hoje só por serem brancos.

Folha - O que o sr. propõe como política de ação afirmativa?
Silva Jr. - Uma proposta apresentada ao governo foi que, na lei de licitações, quando houvesse empate entre licitantes [hoje resolvido por sorteio], fosse dada preferência a empresas que tivessem maior número de negros verticalmente distribuídos - pois é possível que uma empresa de limpeza tenha 90% de funcionários negros. Outra proposta é, nas ações civis por discriminação, inverter o ônus da prova: em vez de a vítima provar que foi discriminada, o discriminador teria de provar que tomou providências para não discriminar. Propomos que empresas condenadas por discriminação percam temporariamente acesso a crédito ou financiamento público.

Folha - E na educação?
Silva Jr. - O ministro Paulo Renato Souza chegou a assumir o compromisso de cotas na distribuição da bolsa-escola. Queremos recursos para os cursinhos para negros e carentes, que, até hoje, não têm investimento do Estado. Há práticas simbólicas e com custo zero, como uma orientação para que a publicidade do governo inclua negros. Uma vez, o diretor do Instituto Rio Branco me disse que negros não se candidatavam no concurso da diplomacia. Sugeri que experimentasse colocar uma garota negra no cartaz distribuído para as universidades. Um cartaz onde só aparecem estudantes brancos dá um recado aos negros de que aquele não é o lugar deles. E há a abertura para adotar cotas. O esforço é para evitar que a idéia de ação afirmativa seja confundida, como tem sido, com cota. Quando se cria o debate sobre cota, o conjunto de possibilidades empobrece.

Folha - Como o sr. avalia a legislação racial no Brasil?
Silva Jr. - Temos uma das melhores legislações do mundo. O problema é que os brancos que aplicam essa lei. Quem ingressa na magistratura, no Ministério Público, na polícia, no curso de direito, em geral, vem dos estratos médios da população. Que experiência tem com negros? Teve um jardineiro, uma empregada doméstica ou um motorista negro. Nunca ou dificilmente conviveu com um negro na condição de igual. Quando vai aplicar o direito, no lugar de apreciar o caso segundo o que diz a lei, vai apreciar segundo os estereótipos e valores que formou. Muitos julgamentos sobre discriminação racial no Brasil são ideológicos, contrários ao que diz a lei.

Folha - O que encontrou ao pesquisar os processos de racismo?
Silva Jr. - Um número extraordinário de reclamações de indivíduos que vão à delegacia e são destratados por agentes da polícia. Defendemos delegacias especializadas, que foram criadas e extintas no Rio e em São Paulo. Há um número grande de ocorrências que não se transformam em inquéritos, inquéritos que não se transformam em denúncias, denúncias que não resultam em condenação. Desde 1951, quando a discriminação passou a ser considerada contravenção penal [o racismo só é crime desde a Constituição de 1988], há pessoas condenadas por discriminação, mas ninguém cumpriu pena. A despeito dessa dificuldade, cresce o número de processos. Consegui localizar 200 processos em curso em 24 capitais.

Folha - Há diferença de resultados nas áreas penal e cível?
Silva Jr. - As ações civis de natureza indenizatória têm apresentado mais possibilidade de êxito, talvez pela resistência dos operadores do direito, que entendem que a pena de prisão seria muito vigorosa para um fato que julgam de menor importância. De 250 ocorrências de racismo na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo, nenhuma resultou em condenação. Na área criminal, a jurisprudência que tem sido firmada é desfavorável à punição dos acusados. Hoje, tenho dúvidas se estávamos corretos em exigir a criminalização do racismo na Constituição. O fenômeno da discriminação no Brasil é incompatível com a idéia de criminalização, porque é tão absolutamente generalizado que a criminalização acaba banalizando. Você tem um crime imprescritível, afiançável, punido com pena de reclusão, e um cotidiano que gera um descrédito na sociedade e nas vítimas em relação à aplicabilidade dessa lei.

Folha - Que orientação o sr. dá a vítimas de racismo?
Silva Jr. - É importante manter a calma e anotar as circunstâncias e o local em que o fato ocorreu. Em casos de racismo, uma das dificuldades é produzir provas. A pessoa deve sempre se fazer acompanhar de um advogado. Uma coisa é o delegado recusar a registrar uma ocorrência para a vítima, outra coisa é fazer isso diante de um advogado. A pessoa deve instaurar a ação criminal e também uma ação indenizatória. Deve acreditar no Judiciário, apesar de tudo. Houve uma ação em que um negro foi discriminado por um funcionário de uma agência bancária e ganhou na Justiça Federal do Rio Grande do Sul uma indenização de 450 salários mínimos. As pessoas têm uma noção de impunidade muito forte quando se trata de crime racial. É o que o Caetano [Velloso] diz: todos sabem como se tratam os pretos. Essa é a regra informal da discriminação.

Folha - Caetano diz que, para os americanos, branco é branco, preto é preto, e a mulata não é a tal. É mais fácil assim?
Silva Jr. - Talvez Caetano tenha razão quando diz que a honestidade com que os americanos lidaram com o que pensam sobre a questão racial favorece a luta contra o racismo. Já me perguntaram: então a segregação é melhor para os negros? É fácil ser ativista contra o racismo na África do Sul ou em Nova York, mas há 20 anos você era visto como louco por falar em racismo no Brasil. O agente causador do racismo no Brasil é invisível. Há dados sobre a discriminação, mas quem é o discriminador? Ninguém é discriminador no Brasil. Há vítimas da discriminação: os negros, pardos. Mas quem é o discriminador? Ninguém é discriminador.

Folha - O que o senhor acha da demanda de reparação dos negros pelos anos de escravidão?
Silva Jr. - A reparação será o nó górdio da Conferência da África do Sul. Os países africanos querem uma reparação aplicada às questões de comércio internacional e dívida externa; os EUA têm um debate que passa pela quantificação e à questão pecuniária. No Brasil, parte das entidades associa a idéia à reparação pecuniária, mas a tendência da militância é associar a reparação às políticas de ação afirmativa. A rigor, me parece um exercício arriscadíssimo tentar quantificar um valor que possa ressarcir a população negra do holocausto que foi a escravização. Penso que a idéia de ação afirmativa como política de reparação não fica com os olhos presos no passado, mas projeta um novo futuro.

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