O planeta pede água

A crise é mundial: 20 países exauriram suas reservas e a cada cinco minutos 500 pessoas morrem de sede ou por beberem de fontes contaminadas. No Brasil, onde o quadro é igualmente preocupante, especialistas alertam: é preciso poupar e garantir com rigor a qualidade do precioso líquido

Gota

A água - ou a falta dela - foi apontada, pelo governo federal, como a grande vilã desta ameaça de apagão, que paira sobre nossas cabeças, sobretudo de quem vive nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do País. A carência de água - estamos falando, agora, claro, de água potável -, no entanto, ultrapassa de muito a questão energética e, num certo sentido, a antecede. Afinal, produz-se energia elétrica sem a existência de água, recorrendo-se a usinas termelétricas, movidas a gás, a energia nuclear ou eólica (advinda do vento).

Mas não se produz água - em outras palavras, as reservas de água do planeta são finitas, não renováveis e estão cada vez menores. "Estima-se que 400 crianças e 100 adultos morrem a cada 15 minutos no mundo devido à falta ou à má qualidade da água", alerta o médico veterinário Luiz Augusto do Amaral, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da UNESP, câmpus de Jaboticabal. "Por isso, um poço de água potável valerá em breve que valia um poço de petróleo nos anos 70."

O volume total de água na Terra é de 1,35 bilhão de km3, mas 97% está nos oceanos e mares - portanto, salgada e imprópria para consumo. Dos 3% que restam, 2% está armazenado nas geleiras. "Resta apenas 1% de água disponível para uso, armazenada nos lençóis freáticos, subterrâneos, lagos, rios e na atmosfera", diz Amaral, que é também um dos coordenadores do Projeto Acquaunesp, que tem como objetivos fornecer serviços de análise de potabilidade da água para indústrias, propriedades rurais e municípios do Estado de São Paulo, principalmente os que não contam com órgãos especializados para a execução desse trabalho.

O Acquaunesp está ligado à Pró-Reitoria de Extensão Universitária e envolve aproximadamente 45 pesquisadores de 17 laboratórios da UNESP, dos câmpus de Araraquara, Botucatu, Guaratinguetá, Ilha Solteira, Jaboticabal, Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto. As ações do grupo estão voltadas para análises biológicas, toxicológicas e físico-químicas da água. "Nosso esforço é para oferecer água da melhor qualidade para o consumo humano", conta o engenheiro químico Láercio Caetano, da Faculdade de Engenharia, câmpus de Ilha Solteira, o outro coordenador do projeto.

Estima-se que onze países da África, como o Egito, e nove do Oriente Médio, como o Kuweit, praticamente não tenham mais água. É crítica também a situação de México, Hungria, Índia, China e Tailândia. "Embora o Brasil tenha uma posição privilegiada, com 8% da água potável do mundo, a distribuição dessa riqueza é desigual: os 80% concentrados na Amazônia abastecem 5% da população do País, enquanto os 20% restantes atenderiam 95% da população", explica a microbióloga Sâmia Maria Tauk-Tornisielo, do Centro de Estudos Ambientais, unidade complementar da UNESP, câmpus de Rio Claro, especialista em wetlands, processo que possibilita a reciclagem de águas contaminadas em meios pantanosos, e autora de trabalhos sobre qualidade de água na Bacia do Rio Corumbataí, próxima a Rio Claro.


Combate a escassez

O fato de ter regiões com abundância de água, como a Amazônia e o Pantanal, e grandes rios subterrâneos, como o Aqüífero Guarani, na região Sul/Sudeste, leva, segundo o engenheiro civil Tsunao Matsumoto, da Faculdade de Engenharia, câmpus de Ilha Solteira, o País como um todo a realizar pouca coisa para combater a escassez de água. "No Nordeste, principalmente na região semi-árida, existe maior preocupação com a água. Aproveita-se toda fonte possível e imaginária", conta o docente, que integra o Acquaunesp. "Lá se armazena água de chuva, são feitas barragens subterrâneas, a água salobra é dessalinizada e os mananciais, protegidos para fins de abastecimento."

Com seus 50 mil km3 de água doce - suficientes para abastecer o mundo todo, por dez anos -, o Aqüífero Guarani, que se estende por 1,2 milhão de km2 e abrange parte da Argentina, Paraguai e Uruguai e os Estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, é o objeto de estudo do físico Daniel Marcos Bonotto, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE), câmpus de Rio Claro. "Após nove anos de trabalho de campo, encontrei, em alguns poços da região, teores excessivos de elementos radioativos, associados a câncer pulmonar e estomacal", diz o docente. "Essa contaminação é motivada por fatores geogênicos, naturais, ligados a formações geológicas."

Após analisar 80 poços em 70 municípios, Bonotto concluiu que a situação não é alarmante, mas exige cuidados. "No geral, a água apresenta boas condições. Mas é preciso garantir o controle dos efluentes para assegurar a qualidade de toda essa água", explica. "O nível de urânio encontrado foi baixo, mas o de rádio, com meia-vida de 1.622 anos, é altíssimo. Está presente em alguns poços com valores até 20 vezes acima do recomendado pelo Ministério da Saúde."

Por isso, Bonotto, coordenador do Laboratório de Isótopos e Hidroquímica do IGCE, onde foram analisadas as amostras de água do Aqüífero Guarani, alerta para a necessidade de pesquisas bem detalhadas antes de utilizar essas águas subterrâneas. "Recomendo um controle radiométrico efetivo por parte dos órgãos sanitaristas responsáveis pela distribuição de água à população", diz.


Apocalipse no Tietê

Situação semelhante é apontada pela geógrafa Maria de Lourdes Conte e o já falecido engenheiro agrônomo Paulo Rodolfo Leopoldo, da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA), câmpus de Botucatu, no livro Avaliação de Recursos Hídricos: Rio Pardo, um exemplo, recém-lançado pela Editora UNESP. Eles concluem, após a análise da Bacia Experimental do Rio Pardo, que abrange os municípios de Botucatu e Pardinho, localizados na região Centro-Sul do Estado de São Paulo, que essas águas são satisfatórias durante grande parte do ano. "Mas são necessárias práticas conservacionistas no uso de fertilizantes e no manejo do solo, para minimizar as perdas de nutrientes", afirma Maria de Lourdes.

Pesquisadora dos valores atribuídos aos rios pela população, a geógrafa Solange de Lima Guimarães, do IGCE, acredita que a população brasileira não tenha ainda uma visão clara da realidade das águas nacionais. "A abundância de água é ilusória. Quantidade não significa qualidade. Basta ver a situação apocalíptica do Rio Tietê próximo a cidades como Cabreúva e Salto", afirma. "A qualidade da água precisa ser mais discutida com a sociedade", concorda o engenheiro mecânico Herman Voorwald, da Faculdade de Engenharia, câmpus de Guaratinguetá, coordenador de um projeto inovador em controle de qualidade de água em Potim, SP.

TorneiraEm síntese, a situação das águas brasileiras, embora ainda confortável, alcança níveis críticos quanto à manutenção de alguns ecossistemas. "Os rios próximos às cidades estão contaminados por resíduos industriais e esgotos, enquanto as atividades de agropecuária e mineração, como mercúrio, trazem conseqüências diretas e indiretas ao meio ambiente e suas populações" diagnostica Solange.

Parâmetros físicos

Para avaliar a qualidade da água, são determinados 33 parâmetros físicos, químicos e microbiológicos, analisados em laboratório. "Se o tratamento de esgotos é fundamental para as cidades, no campo a maioria das fontes utilizadas para bebida e produção de leite estão contaminadas com coliformes fecais. Isso pode gerar enfermidades de veiculação hídrica e má qualidade do leite", aponta Luiz Augusto do Amaral, da FCAV, especialista em qualidade de água no meio rural.

As principais doenças relacionadas à ingestão de água contaminada são cólera, disenteria amebiana, disenteria bacilar, febre tifóide e paratifóide, gastroenterite, giardise, hepatite infecciosa, leptospirose, paralisia infantil e salmonelose. Por contato com água contaminada, pode-se contrair escabiose (sarna), tracoma, verminose e esquistossomose. Finalmente, por meio de insetos que se desenvolvem na água, dengue, febre amarela, filariose e malária. "A falta de água potável, a contaminação química e a veiculação dessas doenças por meio hídrico geram uma preocupação mundial", constata mais um integrante do Projeto Acquaunesp, o químico Ederio Bidoia, do Instituto de Biociências (IB), câmpus de Rio Claro.

Para avaliar a importância da água para o organismo humano, basta constatar que uma pessoa pode passar cerca de 28 dias sem comer, mas não resiste a três dias sem água. "A água é a seiva do planeta, e o futuro de qualquer forma de vida depende da sua preservação e do respeito aos seus ciclos", afirma Sâmia, do Cea. "Ela é vital. Por isso, vale ouro", conclui Solange, do IGCE.

Experiência pioneira garante qualidade do líquido

Enquanto a maioria dos municípios se responsabiliza apenas pela distribuição da água - do poço até o hidrômetro das residências -, a prefeitura de Potim, cidade de 14 mil habitantes, localizada a menos de 10 km de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, promove uma iniciativa pioneira. Abastecido por quatro poços profundos, o município está empenhado em conhecer a qualidade real da água que consome. Para isso, está implantando o projeto "Desenvolvimento de Metodologia para Gestão em Serviços de Fornecimento e Distribuição de Água para Consumo Humano", com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio do Programa de Políticas Públicas. "Como a contaminação pode ocorrer nas tubulações internas das casas ou na própria caixa-d'água, por falta de limpeza, desenvolvemos um sistema que fornece dados eficazes, confiáveis e de baixo custo, que cobre desde o poço até a torneira", diz o autor do projeto, engenheiro Valdir Chumski, da FE/ Guaratinguetá.

A primeira fase do projeto, de janeiro a junho últimos, envolveu R$ 28 mil e resultou na implantação de equipamentos de informática para dotar o Serviço de Água e Esgotos de Potim (Saep) de melhores condições de trabalho. "As contas de água, antes emitidas após dois dias, passaram a ser emitidas em cinco minutos", aponta o coordenador da empreitada, engenheiro mecânico Herman Voorwald, assessor chefe de Planejamento e Orçamento da UNESP. Também foram colocados três sistemas automatizados de dosadores de cloro, substância que mata as bactérias e microorganismos presentes na água . "Com a cloração, também eliminamos o forte odor que a água tinha", explica.

O projeto inclui uma segunda fase, com um investimento de R$ 200 mil durante dois anos, ainda não aprovada pela Fapesp, que inclui a coleta e a análise de amostras em 145 residências da cidade. "Observaremos os itens cloro, ph e turbidez para verificar se a água que chega às casas da cidade segue os padrões da Saep", explica Chumski. "A cada R$ 4 investidos no setor de saneamento, economiza-se R$ 10 na área de saúde. Com essa convicção, vamos estreitar cada vez mais os laços com os excelentes profissionais da UNESP", conclui João Benedito Angelieri, prefeito de Potim.

 


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